segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Comer formigas e poesia



Olha só o que eu ganhei de presente da Flavinha, que chegou de Roraima:  molho de pimenta curtida na formiga. Sim, sim. Não escrevi errado e nem você leu errado. É formiga mesmo! Das grandes. Já tinha experimentado uma farofa feita delas. Na farofa, eram as içás ou tanajuras, formigas voadoras que enlouquecem as pessoas na época da revoada. E dessa, todo mundo come: índios e não índios lá da Amazônia. Tinham um sabor amendoado bem interessante. Essas de agora,  estão no molho de pimenta, cheiram bem forte, mas o sabor nem é assim parecido com o cheiro. Usei no feijão, prá começar, porque a resistência aqui em casa foi grande.
O viés cultural da comida é um assunto em si. Comer formiga no Brasil é coisa antiga e, portanto, coisa de índio. A Flavinha me contou (na verdade me deu uma aula sobre etnias indígenas e seus costumes em relação à pimenta e à formiga!),que esta é do tipo jiquitaia, uma formiga da terra, vermelha e de mordida ardida. O negócio é o seguinte: a base do molho é tucupi puro fervido lentamente. Depois, se adiciona  formiga, pimenta malagueta amassada em pilão e se coloca prá curtir. Não se encontra dela lá em Boa Vista, não. É comum na região de fronteira (Brasil, Guiana, Venezuela), e, do lado brasileiro são os pemon, os ye'kuana e os makuxi que gostam do molho, porque os yanomami também são fãs da formiga, mas não comem pimenta. E como é uma formiga de época, os consumidores do molho de pimenta continuam usando dele quando não tem jiquitaia, mas colocam um pouquinho de carne de caça ou de peixe defumado no molho para garantir um sabor aproximado, pois o maior consumo dela é com beiju...e por aí vai, minha gente, um assunto sem fim!


A Paula e a Nana me trouxeram castanhas e farinha de uarini das férias delas, lá no Pará. E eu, juntei tudo, formigas, castanhas e farinha de ovinha, coloquei bananas da terra, coentro, leite de coco e comi de me lambuzar. E, não estava sentada em minha "escrivaninha na rua Lopes Chaves", mas, como no poema de Mario de Andrade, também fiquei comovida ao me lembrar que "lá no norte, meu Deus, muito longe de mim"  faz pouco, um homem comeu o mesmo que eu. E, este homem é brasileiro que nem eu! Vai aí o poema prá quem não conhece.

Poema Acreano
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti uma friagem por dentro
Fiquei tremendo muito comovido.
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no Norte,
meu Deus !,
muito longe de mim,
na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem alado, negro de cabelo
nos olhos.
Depois de fazer uma pele com a
borracha do dia
Faz pouco se deitou , está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu."